HERMENÊUTICA – A APLICAÇÃO DO DIREITO
Falamos aqui, por diversas vezes, a respeito da superioridade da Constituição em relação às demais normas, denominada de Princípio da Supremacia das Normas Constitucionais.
Essa superioridade dá ao ordenamento jurídico a sua principal forma de organização, denominada de Hierarquia das Normas. É em razão disso que você já viu em sala de aula uma pirâmide com a Constituição na parte mais alta, e as demais normas, abaixo.
*Hoje, o STF adota a teoria da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, sendo esses superiores às leis e inferiores à Constituição.
Ordenamento jurídico é o conjunto de todas as normas, negócios e atos jurídicos de um determinado Estado. Esse universo de atos coexiste e, para que saibamos quais deles possuem validade ou não, é preciso de uma organização com critérios claros e pré-estabelecidos (denominados de jurídico-positivos).
O principal deles é a hierarquia, em que as normas superiores dão validade às inferiores. Isso quer dizer que um ato jurídico só será válido se ele for harmonicamente compatível com os superiores a ele. Por exemplo, um contrato somente será considerado válido se ele for compatível com os atos administrativos que regulam aquela atividade; por sua vez, esses atos administrativos só serão válidos se forem compatíveis com as leis a que eles se referem; e as leis somente serão válidas se compatíveis com a nossa Constituição.
Portanto, no sentido hierárquico, a validade de uma norma depende de sua compatibilidade harmônica com as normas superiores a ela, em uma cadeia que acaba em nossa Constituição.
Todavia, não é somente a hierarquia que organiza esse sistema, pois há muitas normas que estão no mesmo nível umas das outras e, nesse momento, devem ser aplicados outros critérios.
O critério cronológico é o principal quando as normas estão em um mesmo nível. Isso significa que o fator tempo tem suma importância para o direito. Uma norma posterior no tempo revoga uma norma anterior que trata sobre o mesmo assunto.
Nesse exemplo, a norma A, de 2020, se tiver os mesmos assuntos tratados de forma diferente pela norma B, de 2023, será considerada revogada, total ou parcialmente, pela nova lei. Isso é o que chamamos de critério cronológico de validade das normas. Basta que ocorra uma contradição quanto ao conteúdo de uma das normas, representando a negação ou a modificação do conteúdo da outra, para que ocorra a sua revogação.
PONTO DE ATENÇÃO
Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro Art. 2º, §1º: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. |
Essa revogação pode ser expressa quando a Lei B expressamente traz em seu texto o comando de revogação da Lei A. Mas, pode ser tácita também, apenas tratando do mesmo assunto de maneira diversa. Percebe-se que, na segunda hipótese, essa alteração exigirá do intérprete uma operação de comparação entre as duas normas, o que, por vezes, torna difícil essa análise.
No entanto, ainda temos um terceiro critério, o da especialização. Segundo ele, as normas gerais não revogam normas especiais anteriores, e vice-versa, conforme dispõe o art. 2º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB): “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” (Brasil, 1942, [s. p.]).
A regra especial prevalece sobre a regra geral quando ambas se contradizem. O sistema dá primazia à regra específica, pois ela trata de forma mais pormenorizada o assunto em face da regra geral, presumindo-se ser apta a regular determinada situação jurídica de forma mais justa, mais adequada, mais particularizada.
Isso decorre da própria noção de justiça, dando tratamento igual aos que estão na mesma situação, e desigual aos que estão em situações distintas, que merecem do legislador um tratamento diferenciado.
Nesses casos, não há a chamada antinomia, ou seja, não há uma contradição de normas que exige que uma perca a sua validade para a outra; há uma coexistência de normas válidas, mas que serão aplicadas em circunstâncias distintas.
A LINDB é clara ao dispor que, se temos uma lei geral e uma especial, uma não revoga nem exclui a aplicação da outra.
É assim que um contrato pode ser, ao mesmo tempo, tratado de forma geral pelo Direito Civil e de forma especial quando se tratar de uma relação de consumo, dando espaço para as regras especiais constantes do Código de Defesa do Consumidor, quando esse contrato versar sobre uma relação entre um fornecedor de produtos ou serviços e um consumidor.
Ao mesmo tempo, já decidiu o STJ que a Lei de Locação de Bens Imóveis (Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991) é mais especial do que o próprio CDC em relação a algumas cláusulas, quando os contratos versarem sobre esse assunto, devendo ser ela aplicada, e não o Código do Consumidor.
Portanto, os critérios hermenêuticos principais para a solução das antinomias no ordenamento jurídico são: o hierárquico, o cronológico e o de especialidade.
HIERARQUIA DAS NORMAS E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Vimos que qualquer norma que seja incompatível com o texto constitucional ou com os valores por ela defendidos não pode permanecer no ordenamento jurídico, pois é alcançada por um defeito denominado inconstitucionalidade.
Estando no ápice de uma pirâmide, todas as demais normas, como as leis, os atos administrativos e quaisquer outros atos jurídicos, devem ser harmônicas com o texto constitucional, para que sejam válidas.
Caso contrário, precisam ser retiradas do ordenamento jurídico direto quando não tiverem essa harmonia e compatibilidade. A isso se dá o nome de controle de constitucionalidade.
Esse controle não é feito somente por tribunais, ao contrário, todos os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) realizam essa importante função de controle, mas de formas e em momentos bem distintos.
Preventivo
O controle preventivo é realizado antes da entrada de uma norma inconstitucional no ordenamento jurídico e é realizado, principalmente, pelo Legislativo e pelo Executivo durante aquilo que se denomina “processo legislativo”.
Legislativo
O Poder Legislativo, durante o processo de elaboração das normas, exercerá essa função de controle. É nas Comissões de Constituição e Justiça (CCJs) e no voto dos parlamentares que se realiza o primeiro filtro de constitucionalidade, impedindo que um projeto inconstitucional tenha prosseguimento no processo de elaboração das leis.
Nas CCJs, o Legislativo pode rejeitar e arquivar um projeto de lei que seja contrário à Constituição. Da mesma forma, durante a votação – sem precisar de explicação sobre isso –, os parlamentares podem não aprovar um projeto de lei que atente de qualquer forma à Constituição.
Executivo
Ao receber o projeto de lei aprovado pelo Legislativo, o Chefe do Executivo (presidente, governador ou prefeito) poderá sancioná-lo, promulgá-lo e publicá-lo (momento em que ele ingressará no ordenamento jurídico).
Também, poderá vetar o projeto de lei aprovado. O veto pode ser político, quando se referir a um projeto aparentemente constitucional, mas inconveniente ou inoportuno para o país segundo o ponto de vista do Poder Executivo, ou jurídico, quando o projeto de lei apresentar inconstitucionalidade formal ou material, não podendo ingressar no ordenamento jurídico.
Judiciário
O papel do Poder Judiciário no controle preventivo de constitucionalidade é extremamente excepcional1 . Somente por meio de um remédio constitucional – o Mandado de Segurança – promovido com exclusividade por um partido político ou por um parlamentar, o Supremo Tribunal Federal permite a interferência judicial no processo legislativo. Isso ocorre quando o projeto de lei (ou de emenda constitucional) violar de forma afrontosa uma cláusula pétrea ou os procedimentos necessários para o exercício do processo legislativo, tornando-o inválido.
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE REPRESSIVO
Quando uma lei é publicada (no Diário Oficial da União, para as normas federais, e nos demais diários oficiais estaduais e, eventualmente, municipais), ela ingressa no ordenamento jurídico, passando o controle de sua constitucionalidade a ser denominado repressivo. Esse controle é desempenhado de forma primordial pelo Poder Judiciário, com papéis pontuais dos demais poderes.
Cabe ao Judiciário o papel de controle da constitucionalidade das leis em dois sistemas muito diferentes de atuação: o modelo norte-americano – difuso – e o modelo austríaco – concentrado.
Sistema difuso de constitucionalidade
É denominado de americano em razão de sua origem histórica remeter ao caso Marbury versus Madison, de 1803, em que tornou possível reconhecer a nulidade de qualquer norma que viole a Constituição.
Segundo essa teoria, qualquer magistrado, em qualquer instância ou processo, poderá reconhecer e julgar naquele caso em concreto a inconstitucionalidade de uma norma, afastando a sua aplicação. Ele afasta a aplicação da norma entre as partes, não mais valendo para aquele caso em concreto, mas não atingindo outras situações, por mais próximas ou similares que sejam.
No controle difuso, qualquer juiz ou tribunal (seja ele cível, penal, trabalhista, eleitoral, militar etc.) poderá analisar a constitucionalidade de uma norma infraconstitucional e afastar a sua aplicação naquele caso concreto.
Por isso, o controle difuso também recebe o nome de controle concreto, de exceção ou defesa ou incidental e tem efeitos somente entre as partes do processo, o que denominamos inter partes.
A inconstitucionalidade de uma norma é um incidente na causa e deve ser resolvida para que a solução da causa seja alcançada, isto é, o pedido a respeito da utilidade buscada pela ação seja julgada.
Contudo, por se tratar de uma ação que trata da constitucionalidade das normas, em tese, a ação poderá chegar até a última instância, o julgamento do STF, por meio do Recurso Extraordinário.
Esse recurso, no entanto, vem sofrendo algumas limitações. A mais importante delas é a exigência de repercussão geral, isto é, o recorrente deve demonstrar a relevância do seu recurso para todo o ordenamento jurídico.
PONTO DE ATENÇÃO
Art. 102, §3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) |
Sistema concentrado de constitucionalidade
O sistema concentrado também é denominado de austríaco em razão de sua origem ser apontada na Constituição austríaca de 1920. Nesse sistema, o controle de constitucionalidade deve ser feito por apenas um órgão judicial especializado e de exclusiva função, denominado de Corte Constitucional.
Denomina-se concentrado em razão do seu diminuto, ou único, número de órgãos que gozam de tal competência de realizar o controle.
No Brasil, adotamos um sistema denominado de misto, em que há tanto o controle difuso como uma forma do controle concentrado, realizado, em especial, pelo Supremo Tribunal Federal.
A Constituição de 1988 adotou os dois sistemas, mas não podemos afirmar que o STF é uma Corte Constitucional nos moldes do sistema austríaco. Isso porque a CF estabeleceu diversas competências para esse órgão, seja no sentido de ser um órgão recursal amplo no que tange ao controle difuso (julga o chamado Recurso Extraordinário), seja porque exerce competências originárias, funcionando até mesmo como um tribunal criminal originário, como nos casos dos crimes praticados por agentes que gozam do chamado foro privilegiado, sendo um tribunal com amplíssima competência constitucional.
No controle concentrado, os legitimados a propor as ações são mais restritos; eles estão previstos em um rol exaustivo no art. 103 da Constituição. Somente os legitimados constantes do art. 103 poderão promover as denominadas Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADIs), as quais são: a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão e a Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais.
No controle concentrado, somente o STF pode realizar o controle direito ou abstrato das normas infraconstitucionais federais e estaduais perante a Constituição Federal.
Os tribunais de justiça dos estados poderão também realizar esse controle das normas municipais e estaduais perante as constituições estaduais de seus estados.
Nas ações diretas, os legitimados do art. 103 requerem a retirada da norma inconstitucional do ordenamento jurídico, isto é, o pedido, e não a causa de pedir, é a declaração da inconstitucionalidade. Dessa forma, ao afastar a aplicação da norma inconstitucional, o STF torna a norma inaplicável para todo mundo, o que chamamos de efeito Erga Omnes.
Em resumo, no controle difuso, qualquer juiz pode se manifestar a respeito da constitucionalidade de uma norma, mas somente poderá afastar a sua aplicação naquele caso em concreto entre as partes do processo, de nada valendo essa decisão para terceiros, que ainda deverão respeitar a lei por ele considerada inconstitucional.
No controle concentrado, por sua vez, o STF ou os tribunais de justiça estaduais poderão declarar a lei inconstitucional para todos (erga omnes) e, assim, a norma deixa de ser observada e ninguém mais precisa cumprir o que ela manda.